Ah, a nossa casa! Aquela que ansiávamos chegar rapidamente, a fim de desnudarnos das vestimentas que tanto nos apertam, dos modos exigidos nos diversos contextos fora dela, bem como das infindáveis obrigações; aquela que serviu para relaxar da rotina estressante; aquela que foi palco de possibilidades para deixar as personagens de lado e finalmente pôr-se em cena, hoje não mais dá vida à liberdade, mas à prisão. Não se fica mais em casa por opção de vivência, e sim porque a sobrevivência gerou uma obrigação.
As linhas que separam o público e o privado, antes claras, agora se embaçam quando tudo passa a ser feito no mesmo ambiente, desde a produtividade até o descanso, desde a atenção ao trabalho até a atenção que se exige de um pai/mãe/filho/amigo exemplar, desde a prática esportiva até o estudo remoto. Um dos possíveis resultados disso é a sensação de sobrecarga sem uma válvula de escape sequer possível, uma vez que continuar preenchendo o vazio interno com objetos e atividades externas não nos é mais possível, tendo em vista as opções limitadas com o distanciamento social e quarentena.
Outro resultado, ainda, refere-se à emergência de situações embaraçosas e conflitivas entre os moradores da residência, que com a pandemia passam forçosamente mais tempo juntos, fazendo com que muitos dos ideais sobre o outro desabem e com que
muitas questões mal resolvidas no passado venham à tona – mesmo que a contragosto.
Parece ser difícil ter que lidar com aquilo que não se quer ver sobre o outro e, mais ainda sobre si, quando as fugas propiciadas pela vida “normal” não estão mais disponíveis. Alguns demonstram suportar bem tal angústia, outros são acometidos por
transtornos psiquiátricos e/ou psicológicos, e há aqueles que recorrem as “fugidinhas na quarentena” como tentativa. Talvez a diferença entre aqueles que não conseguem para os que conseguem suportar os efeitos pandêmicos seja não somente a capacidade de tolerar frustrações com o outro, a privação do contato físico, a quebra da onipotência e do controle narcísico ou o adiamento de certas atividades antes essenciais, mas sobretudo a consciência de que o Covid-19 é uma ameaça menor se comparada ao que pode residir dentro de casa, ou melhor, dentro de nós mesmos.
Afinal, isolar-se fisicamente dos outros é estar em presença massiva consigo mesmo. O confinamento nos evoca a experiência de punição, remetendo a épocas antigas, quando certas Instituições como prisões, manicômios e escolas infligiam em seus membros castigos físicos, condições desumanas e cerceamento total da liberdade como forma de reclusão. Ainda hoje tal ideia é reforçada ao se colocar as crianças malcriadas isoladas no “cantinho do pensamento”. Pior do que ser sentenciado por um “crime” é ter que
pagar por um que não se cometeu; essa é a sensação das pessoas por não poderem sair de casa devido a Pandemia. Lembremo-nos: tomar os devidos cuidados com higiene e obter informações sérias e atualizadas pode aplacar as ameaças externas, mas é somente olhando para si que neutralizamos a maior ameaça – a angústia trazida pela falta de autoconhecimento e autoaceitação.
BRUNA GOBBATO SILVEIRA é psicóloga & psicanalista