Como a brincadeira de cancelar alguém na internet se tornou um dos grandes assuntos da sociedade moderna

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Mas até que ponto é um cancelamento para fazer uma reflexão moral e quando passa a ser linchamento ligado a ameaças se transformando em ódio?


A cultura do cancelamento é um termo que está cada vez mais na moda ‘virtual’. É um termo que se refere a alguém que toma uma atitude, tem uma postura, ou comenta algo que muitos acabam repudiando, o que gera um ‘cancelamento’ no perfil da pessoa na rede social. Em alguns casos, há também um cancelamento com consequências no mundo real, como a quebra de contratos publicitários e de trabalho, entre outros.

Mas o professor de Psicologia da Unip, João Eduardo Coin, alerta que essa cultura do cancelamento não é algo criado recentemente na internet. “Essa condição de exclusão não foi inventada agora, vivemos numa sociedade em que a desigualdade e exclusão são típicas, muito frequente em diversas áreas, seja no trabalho, no cotidiano, ou por conta das pessoas serem diferentes”, explica.

O cancelamento é mais frequente entre influenciadores digitais e criadores de conteúdos ativos nas plataformas digitais e nas mídias sociais. A influenciadora de cultura Geek, Juliara Vasconcellos, do canal ZonaC, alerta que existe um grande cuidado nas palavras em frente às câmeras. “As falas podem ser distorcidas, é muito comum pessoas tirarem palavras de contexto e usarem como bem querem. Por isso, a gente tem que moldar nossas opiniões e manter tudo sempre bem claro, para não acontecer esse tipo de coisa”, disse.

Você já parou para pensar como o cancelamento pode afetar a vida de alguém? Coin explica que “essa exclusão produz sofrimento, impotência e consequentemente um isolamento”. Além disso, a depressão gera ainda mais baixa autoestima. “Solitariamente, você não consegue se defender dos outros, deixando a sensação de você estar contra o universo, e como é que você se defende disso?”, pergunta Coin.  O psicólogo complementa: “Do linchamento você não se defende, você se submete, a menos que haja alguma intervenção para te salvar”.

Por isso, Juliara alerta que é sempre preciso cuidar do seu psicológico primeiro para se tornar uma figura pública na internet. “Por mais que você seja super equilibrado, em algum momento pode aparecer algum comentário que vai te abalar e mexer com você mais do que imagina”, diz.

Um dos grandes malefícios da cultura do cancelamento está na repercussão negativa dos comentários dos usuários em diversas plataformas digitais. Até que ponto o cancelamento passa a ser um linchamento virtual? Tal problema se agrava quando pessoas usam perfis falsos, sem se identificar, para fazer comentários que ninguém tem coragem de dizer no olho a olho.

O Twitter é a rede social mais famosa quando pensamos em cancelamento virutal, mas existe um boicote em todas as plataformas também

“Aqui está se falando de um linchamento da sua dignidade, do seu valor como ser humano, da possibilidade de ter voz. É um outro tipo de morte, explica João Coin. “E é até mais impactante, pois as pessoas perdem dinheiro, poder econômico e o seu negócio pode morrer”, complementa ao falar sobre os riscos do cancelamento.

Como influenciadora de cultura Geek Japonesa, Juliara afirma que todos os ambientes e temas possuem uma certa toxicidade. “Infelizmente no mundo pop ainda vemos muito isso, mesmo tendo assunto interessantíssimos para abordar, as pessoas ficam abaladas com certas coisas”, relata. Ela dá um exemplo na prática: “Veja o filme do Pantera Negra, por exemplo, ao mesmo tempo que muitos pretos se orgulham de ver alguém da mesma pele em posição de heróis, fez com que essas pessoas sofressem ataques de brancos alegando que o filme era uma ‘lacração desnecessária’”, complementa de maneira melancólica.

A internet proporciona um novo tipo de interação, segundo o psicólogo Coin. Essa interação não precisa de um intermediador entre a fala de uma personalidade e seu público. Hoje, pode-se mandar mensagens diretamente para todos, ou seja, a internet deu voz a todas as pessoas, mas tal facilidade não é vista com bons olhos pela Psicologia.

“Embora a gente tenha uma capacidade de adaptação, a internet é o ápice de um processo de coletivização, de disposição de informação que vem acontecendo nas últimas décadas. Antes da internet, as notícias chegavam a uma certa velocidade nas casas das pessoas, e por conta da tecnologia, tem-se a ideia de que você está conectado o tempo inteiro com o mundo, mas isso não é verdade!”, explica Coin, que conclui: “O isolamento já é uma condição da nossa sociedade, de blindar esse excesso de informações. Se eu não quero mais ver notícias, eu desligo a TV, saio das redes sociais, vou ocupar a mente com outra coisa”.

Portanto, na opinião dos entrevistados, deve-se tomar cuidado na hora de falar publicamente na internet, para não estar sujeito a linchamentos e ataques. “Devemos sempre ter responsabilidade sobre o que falamos, além de prestarmos atenção a cada opinião emitida na internet, porque pode acontecer dos seguidores serem influenciados a fazer algo baseado no que você fala”.

Mas será então que a total liberdade de expressão é uma utopia? Ainda estamos vivendo a Era de uma nova política de privacidade de dados, como a Lei Geral de Proteção aos Dados (LGPD). “Isso tudo é uma grande novidade, pois solicita algum controle sobre a maneira das pessoas se manifestarem. Não se pode dizer o que pensa, mas é sobre o impacto disso. O fato de estar numa rede social não significa falarmos o que bem quiser, revela Coin.

Juliara Vasconcellos é dona do canal multiplataforma ZonaC @insta @face @twitter @youtube @twitch @tiktok

As gerações mais novas, consideradas nativas digitais, estão criando uma nova forma de interação social. Muitos deixaram de lado brincadeiras de rua, sendo substituídas por jogos online. Assim como muitos deixaram de sonhar em ser um jogador de futebol e passaram a querer ser streamer no YouTube. Na opinião do psicólogo, muitas mudanças têm ocorrido na sociedade. Os likes tem um valor enorme para essa geração mais nova, é aquilo que os fazem se sentir queridas, reconhecidas. E isso pega também no valor econômico, por isso se fulano é contra você, ele não se importa do que você está falando, ele expressa o sinal de ódio”, diz.

Juliara vê com mais otimismo essa nova geração que está crescendo digitalmente. “Eles estão expondo muitos problemas que devem ser solucionados e até evitados. Mas, ao mesmo tempo que existe muito acesso à informação, tudo é jogado no colo de todo mundo e acaba não existindo um filtro a isso”, revela. Ela dá um “puxão de orelha” em gerações mais antigas. “Será que eu postaria toda a minha vida assim? Às vezes penso que a culpa da geração mais nova se expor assim começou na minha geração, que acabou impondo isso, criando essa imagem de que se mostrar é legal!”, desabafa.

A sociedade atual é naturalmente mais julgadora? Para João Coin, sempre fomos muito atentos ao que os outros são. “A ideia de que tudo pode ser referência, tudo pode ser compartilhado, desafia a ideia de vínculo também. Se eu acompanho tantas pessoas naquela mídia social, então tenho vínculos com todos? Não, fulano não é seu amigo”, revela. E continua: “quando há um ataque a uma dessas pessoas, ela passa a se destacar, questionando o público a sempre tomar partido e defender um lado”, conclui.

Juliara ainda faz uma relação sobre o ‘falar o que quiser’ com o natural amadurecimento. “Comecei um blog em 2012 e abri o canal em 2015, acredito que tinha mais liberdade pelo fato de que, quanto mais novo, menos temos medo de ‘tomar hate’. Por mais que muitas coisas que falei anos atrás não me afetariam hoje, eu tenho certeza que o contrário aconteceria, assim como acontece com muitas figuras públicas”, finaliza.

É incrível como a internet possui poder para alavancar uma carreira ou desmoronar anos de experiência. Portanto, não se trata de uma cultura aceitável, seria interessante que exista políticas e leis que se adequem a nova realidade e crie mais respeito ao próximo, pois é muito fácil hoje em dia tirar frases de contexto para linchar, difamar ou diminuir alguém, quando na verdade é preciso fazer uma reflexão profunda e ver como podemos lidar com este novo tipo de realidade, cada vez mais comum em nosso cotidiano.

Professor João Eduardo Coin e o estagiário do Grupo Sul News Matheus Laube em descontração depois do grande bate papo

SUGESTÕES DE PAUTA: reportagem@gruposulnews.com.br

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