Fruto de pesquisa da professora Drª Inez Peralta, obra esmiuça a vida e trajetória de uma das principais figuras de Santo Amaro
Os raios de sol da manhã atravessavam as grandes janelas, iluminavam a sala de reunião e davam mais evidência aos inúmeros livros nas estantes que cobrem as paredes do escritório da Professora Doutora Inez Garbuio Peralta na Chácara Santo Antônio. Era um dia agradável de agosto, daqueles que fazem parecer que tudo está em perfeita harmonia, e a mestra recebia a equipe do Grupo Sul News para uma entrevista.
Doutora em história pela Universidade de São Paulo (USP), dona Inez sempre teve o sonho de estudar e pesquisar os acontecimentos do passado. Sua vida é dedicada à academia, pesquisando, estudando e escrevendo os fatos históricos, mas também passou parte do seu tempo na licenciatura, ensinando crianças e jovens e depois formando novos historiadores na graduação e pós-graduação da USP. Ainda participou de projetos solidários de alfabetização no Brasil e no mundo.
Mesmo atuando em sala de aula, nunca deixou de pesquisar e escrever sobre os ocorridos históricos e teve trabalhos publicados em livros e artigos. Um de seus grandes focos de pesquisa foi o bairro de Santo Amaro, sobre o qual dona Inez redigiu duas obras, Santo Amaro: Um século de autonomia e Cemitério de Santo Amaro: Segredos ainda não revelados. “O professor Peralta (marido de Inez), que é rato de biblioteca, tinha comprado as revistas do Arquivo Municipal. E nessas revistas do Arquivo Municipal tinham as atas da Câmara de Santo Amaro e eu lia. Tirei da revista todas as atas, montamos livros e eu via que muita coisa que se falava lá não era verdade. Eu resolvi pesquisar e descobrir, enfim, o que era Santo Amaro,” explica.
Agora a doutora em história está prestes a lançar mais um livro dedicado à região. Diferente dos demais, a nova obra trata de uma figura emblemática do bairro, o bandeirante Borba Gato, que viveu no hoje bairro da zona sul e deixou a região para percorrer o Brasil atras de riquezas. Em 2021, o personagem histórico tornou-se motivo de discussão depois de um grupo de ativistas atear fogo na estátua localizada na entrada de Santo Amaro. O motivo da ação era questionar o fato de São Paulo ter uma homenagem a alguém que é associado a escravidão, assassinatos e destruição do meio ambiente em nome do progresso.
Para a professora, o livro é uma oportunidade para conhecer a vida desse homem que gera questionamentos em nossa sociedade e entender o Brasil daquela época. “Eu gostaria que as pessoas lessem o livro, lessem com liberdade, e aí sim julgassem. Eu esqueço aquela visão que tenho e vou ler isso aqui. Aí sim, eu posso ser contra ou a favor. Mas, a priori, acho que a gente não pode julgar o Borba Gato sem conhecê-lo,” afirma.
O livro Manuel de Borba Gato: um mineiro santamarense, será lançado em 11 de outubro. Nesta obra, a autora percorreu o mesmo trajeto do bandeirante após sair da Santo Amaro para entender e pesquisar sobre sua vida. Abaixo você confere uma entrevista exclusiva para entender o processo de pesquisa da professora.
Grupo Sul News: Como foi sua vida acadêmica e trajetória neste universo. Como era dar aulas?
Professora Inez Garbuio Peralta: Eu sempre quis fazer História. Desde os meus anos de ginásio, eu queria fazer História. E aí fui para a universidade, fiz os quatro anos do curso. Depois entrei para o mestrado, que foi sobre o Caminho do Mar, em Cubatão. Depois fiz doutorado e ainda fiz um curso de pedagogia. Participei de muitos congressos já como aluna, depois como professora. Estive na universidade desde 1992. Dei aula durante todo esse tempo. Eu dava aula uma vez por semana, mas era de tarde, das 14h às 18h e das 19h30 às 23h. Então, ficava a tarde toda na universidade. Depois participei de vários projetos. O projeto que eu achei mais significativo foi de alfabetização solidária. Na alfabetização solidária, liderei um grupo que percorreu o norte e nordeste do Brasil. Também fui dar aula para um grupo de alfabetizadores do Timor-Leste, no governo do Fernando Henrique Cardoso, quem dirigia era a esposa dele (Ruth Cardoso), que também era professora. O Timor-Leste foi dividido em vários setores e eu fiquei com um dos setores. Dei a volta ao mundo umas cinco vezes para ir para o Timor-Leste e voltar. E, durante todo esse tempo, fiz pesquisa. Eu dei aula, já fui apresentar trabalhos no Peru, mandei um trabalho para o México. Não fui, mas mandei um trabalho para o México. E fui para a Argentina. Apresentei trabalhos na Argentina. Viajei muito pelo Brasil. Conheço um pouco do Brasil. E sempre gostei de pesquisar. Tenho uma série de trabalhos pequenos, artigos. Tenho os capítulos de um livro de história do estado de São Paulo.
GSN: Muito diferente dar aulas no Brasil e fora do Brasil?
PIGP: Depende, no Brasil eu dei aula para universitários, que é muito difícil porque, em geral, os alunos vão para a faculdade sem saber onde estão. Pelo menos na minha época era assim. E aí pensa que é uma coisa e é outra. História não é uma brincadeira, é uma ciência que tem as suas regras para serem feitas. E os alunos não percebiam isso. Com o passar do tempo, iam aprendendo. Pós-graduação foi mais fácil, porque eram professores formados, que vinham de vários estados do Brasil e de fora do Brasil também. Eu tive alunos de pós-graduação argentinos, peruanos, tive de todo lugar. Então, eu acho que a gente tem que ir se adaptando um pouco ao grupo. Na Argentina, para apresentar o trabalho, eu apresentei em português. Então, entenderam, não teve problema. Porque eles estavam interessados. Não era uma coisa geral, era uma coisa muito específica. Então, eles queriam aprender aquilo. Eu dei aula num projeto que eu fiquei muito feliz. Foi no Amazonas, no projeto Jari, de uma indústria de celulose, bem antiga. Foi idealizado por um alemão e ele mandou construir um barco no Japão e o barco era uma máquina. E essa máquina veio para o Brasil. E tinha os professores que davam aula para os alunos, porque transformou numa comunidade, e essa comunidade, os alunos tiveram aula primária, e formaram professores, e eu fui dar aula para esses professores. E eu fiquei muito satisfeita, porque eles estavam muito interessados. Então, eu acho que é quase proporcionalmente, quem tem menos, procura receber mais. Quem já tem um pouco mais, procura receber menos. Então, as comunidades do Timor-Leste, que eram professores alfabetizadores, recebiam muito bem, esse projeto do Amazonas também, eu acho mais interessados do que os alunos da Universidade de São Paulo. Agora, em termos de pós-graduação, os alunos da Universidade de São Paulo eram ótimos.
GSN: Bom, a senhora já escreveu um livro sobre Santo Amaro e sobre o cemitério de Santo Amaro. De onde veio esse interesse por estudar a região e como foram esses trabalhos?
PIGP: Morava no Ipiranga e quando casei me mudei para Interlagos. Lá eu comecei a estudar a história da região. Fiz alguns trabalhos com os alunos. E tinha ligação plebiscito de Santo Amaro, para saber se ele queria ficar independente ou junto com São Paulo. Eu conheci uma pessoa bastante interessante, que não existe mais, que é uma pessoa muito controvertida, que foi o Alexandre do CETRASA [Centro de Tradições de Santo Amaro]. Ele participava desse projeto do plebiscito de Santo Amaro, ele era a favor da independência e eu acho que eu era contra. Porque não tinha mais sentido transformar o bairro de Santo Amaro num município. Teria que pegar o Ipiranga, Itapecerica, Embu Guaçu, para formar um município. Era impossível, porque nenhum deles queria. E aí eu conheci o Alexandre que me chamou para participar do CETRASA. E eu fui. Lá, em Interlagos, a gente já tinha o professor Peralta, que é rato de biblioteca, tinha comprado as revistas do Arquivo Municipal. E nessas revistas tinham as atas da Câmara de Santo Amaro, desde 1833. E eu lia. Tirei da revista todas as atas, montamos livros com as atas e eu via que muita coisa que se falava lá não era verdade. Eu resolvi pesquisar, descobrir, enfim, o que era Santo Amaro. Em geral, as pessoas leigas que não sabem história, pegam uma coisa assim e vão repetindo. Tem coisas repetidas na história de Santo Amaro que não são verdadeiras. Aí eu quis pesquisar para descobrir racionalmente um caminho que me desse bases para fazer determinadas afirmações. Então eu faço algumas desse livro sobre a famosa riqueza de Santo Amaro, que o Alexandre dizia que Santo Amaro sustentou São Paulo. Não foi bem assim. Eu debati muito com ele a data das origens de Santo Amaro. A gente discutia muito. Eu gostava dele porque ele punha as coisas que ele acreditava e eu punha as que eu tinha pesquisado. E a gente chegava normalmente em um acordo. Teve um ano que o Alexandre fez um santinho, com a figura de Santo Amaro e a data da fundação de Santo Amaro. E ele fez uma data de fundação que não é essa que os santamarenses falam. Eu gostava de trabalhar um pouco com o Alexandre. Ele me ouvia, coisa que ele raramente fazia com qualquer um. Ele falava, falava, mas me ouvia muito. Eu gostava dele, tanto é que quando ele morreu eu escrevi um artigo sobre ele. E aí eu comecei a me interessar mais por Santo Amaro e surgiu esse livro. Eu dava aula na universidade sobre o século das independências, trabalhava com Argentina, Peru e São Paulo. Era o século XIX, o século em que esses países se tornaram independentes. E aí eu escrevi esse livro, que é basicamente século XIX e XX. E esse também é século XIX. E uma coisa que me chamou muito a atenção, para pular desse para esse, foi aquela angústia de dizer que Santo Amaro era desenvolvida. Eu mostro um pouco que não. Mas, para fazer isso, eu li e resumi uma documentação muito vasta. Com relação ao cemitério de Santo Amaro, que é o cemitério público mais antigo que existe e ninguém nunca considerou isso, porque o da Consolação foi inaugurado depois do de Santo Amaro. Então, Santo Amaro tem esse privilégio de ter o primeiro cemitério público. Me encantei pelo cemitério, fui inúmeras vezes. Aí eu falei, “bom, agora acho que eu vou me aventurar pelo século XVII, XVIII”, as origens de Santo Amaro. Porque é difícil você trabalhar com a história antiga, a leitura é difícil. As palavras têm outro significado, a construção do texto é diferente. E aí eu comecei a trabalhar e uma senhora que trabalhava comigo me desafiou, “por que você não escreve sobre Borba Gato?”. Falei, “você é louca. Escrever sobre Borba Gato. A Maria Helena Petrillo Berardi metia o pau nele, dizia que ele era matador de índio”. Ela falou assim, “ah, tenta”. E aí eu fui e tentei. Pesquisei longamente. Essa foi uma incursão difícil. Me fechei, participava de mais nada. Pesquisei nos arquivos de São Paulo, na Cúria Metropolitana. Depois fui para Minas Gerais, pesquisei no arquivo lá. Fui para Sabará, para Caeté, Mariana. Caeté é interessante porque é uma outra cidade que é inimiga de Sabará. Então, enquanto Caeté privilegiava o português, que era contrabandista, Sabará privilegiava o Borba Gato, que era um paulista, um santamarense. Mas nunca ninguém tinha feito essa ligação do Borba Gato viajando, porque eu achei linda a trajetória dele. Ele nasceu aqui, apesar de dizerem que ele veio de Portugal. E depois, com 20, 25 anos, ele se casou com a filha do Fernão Dias Paz. E aí ele entrou na bandeira do Fernão Dias, que era uma bandeira gigantesca. É uma trajetória importante porque ele é um bandeirante que vai, trabalha como administrador, que chega num determinado ponto onde ele se encontra com o governador e dizem que pediu perdão, mas não tem prova que ele pediu perdão. O que se sabe é que ele foi perdoado de uma morte que ninguém prova que foi ele que fez. E aí ele continuou. Mas quando ele estava perdoado, ele voltou para Santo Amaro, veio aqui e pegou a família, levou para Taubaté. E depois foi para Sabará. Mas isso não aparece em quase lugar nenhum. Eu me desafiei para descobrir, porque tem muitos santamarenses que dizem que são descendentes de Borba Gato, e não são. Acho que não tem um santamarense descendente de Borba Gato. Porque o Borba Gato casou e teve três filhas. As filhas foram embora com ele para Minas. Elas se casaram, tiveram filhos. Ele teve só filha mulher. E os netos dele foram para Portugal. E quase todos, se não todos, foram padres.
GSN: É fácil ter acesso a esses documentos antigos, e por serem documentos muito antigos, um papel muito velho, leva-se mais tempo para trabalhar? Quanto tempo, mais ou menos, de investigação?
PIGP: Primeiro para localizar, que já é um processo difícil. A gente não tem acesso livre aos arquivos. No arquivo do município de São Paulo não foi difícil. No começo era um processo mais complicado, depois tornou-se mais fácil. Agora, uma boa parte não está no arquivo de São Paulo. Tá no arquivo da Cúria Metropolitana que é muito difícil, muito chato de pesquisar. Antes da pandemia, a gente entrava, você paga pra entrar, você quer tirar fotografia, você paga. Depois da Covid você não entrava mais. Então, o que o dirigente lá diz que é para a gente pesquisar no Family Search. Agora, tenta ler alguma coisa do Family Search do século XVI e XVII. Então, pesquisar a história do Borba Gato seria legítimo, seria lógico você pesquisar nessa documentação da Cúria. Só que tem um problema muito grave. A documentação de Santo Amaro, desde o século XVII, eu não sei só de Santo Amaro, não sei se do Brasil inteiro, mas no século XVII, ela foi muito desprezada. Os livros velhos, que são chamados livros do tombo, sumiam. Jogavam fora, transcreviam. Então, não existe lugar nenhum, nenhum livro do tombo que diz que foi o casal, João Dias e a Susana Rodrigues, que deram a estátua para a Anchieta rezar a missa. Então, tem erros muito difíceis. E é muito difícil ler. Tenho um rapaz que trabalha comigo, que acostumou a ler documentos do século XVI, XVII. Então, ele lê. Eu fiz curso de paleografia, existe curso de leitura, até do século XIII, XIV, porque é muito diferente. Eu leio um pouco, consigo transcrever. Mas esse processo de gênero, por exemplo, ele tem 80, 100 páginas, a metade das páginas estão estragadas, uma parte está em branco, outras estão rasuradas, então é muito difícil. Eu trabalhei muito em cima desses documentos e mesmo a doação das seis marias que o Borba Gato recebeu, também é difícil. Elas constam desse meu novo livro, eu pus como anexo, tem vários documentos. Mas eles já são impressos, mas mesmo impresso é difícil de ler. Então, se você não conhece a literatura da época, a história da época, você fala umas besteiras enormes, porque tem uns textos que, se você não conseguir entender, você escreve coisa errada, como, por exemplo, o Frei Gaspar Mar de Deus. Ele errou uma série de coisas. Precisa muito trabalho e precisa fazer curso de paleografia, senão não consegue ler. Mas, enfim, saiu o livro. Eu acho que eu consegui fazer um bom livro. Não é maravilhoso, mas eu acho que, se eu não tivesse já cansada, eu teria que percorrer mais uma longa caminhada para conseguir fazer aquilo que eu queria. Mas, nessa minha caminhada, lendo, traduzindo, transcrevendo, uma pessoa que foi muito importante foi meu filho, porque ele aprendeu a ler também. Ele não fez curso de nada, ele fez curso de educação física. E ele ia abrir os arquivos comigo e lia no computador, porque a maior parte era no computador. Algumas têm papel, mas outras não. Então, ele lia, me ajudava, me dava uma assessoria fantástica. Ele foi em Portugal, copiou um documento pra mim. Foi muito útil pra mim.
GSN: Ele simplificou o trabalho?
PIGP: Nossa, muito, muito. Ele foi muito útil.
GSN: Agora falando propriamente de Borba Gato. Como a senhora o definiria?
PIGP: Bom, a gente tem que entender o homem no seu tempo. Hoje, se ele existisse hoje e fizesse o que ele fez, talvez a gente recriminasse. Mas, como um homem do século XVII, eles saíram daqui em 1640, 1654, acho que é isso. Você imagina o que era aqui em 1654. Era uma terra com muita água, muita árvore e com solo não rico, um solo pobre, como toda característica de São Paulo. São Paulo, nessa região aqui, tem solo muito pobre. E plantavam algumas plantações, ele e a família dele. A esposa dele é descendente de um cara muito interessante, muito culto, e que era bandeirante.
Então, o que os paulistas fizeram? Os paulistas, quase uma porcentagem muito grande foi bandeirante no século XVII, começo do século XVII. As atas da Câmara dizem que São Paulo se despovoava, que não tinha gente para participar da Câmara, que eram cinco pessoas. Então, não tinha, porque todos tinham ido para o sertão. Numa primeira fase, predadores de índios, como o sogro dele. O sogro dele tinha feito várias incursões pegando índios. O Borba Gato não fez isso, não existe um relato que o Borba Gato tenha entrado numa tribo, dizimado a tribo. Então eu vejo ele como um homem corajoso, bastante humano, porque o que parece é que ele teria assumido a morte do Dom Rodrigo, mas que não teria sido ele, que teria sido alguém para defendê-lo. Porque ele veio, quando ele foi encontrar o Dom Rodrigo, ele foi muito animado. Porque o Dom Rodrigo vinha de São Paulo, então trazia parentes, trazia conhecidos. Ele imaginava isso. Aparentemente, ele imaginava isso, mas a coisa não foi bem assim. Parece que o Dom Rodrigo tinha um autoritarismo significativo, porque ele nem era português, ele era espanhol, a serviço de Portugal. Então, ele exigiu que o Barba Gato entregasse terra, plantação e tudo pra ele. E o Borba Gato não gostou muito da história, não. Então parece que brigaram e tal, mas não consta que teria sido o Borba Gato que tenha matado. Eu acho ele um homem corajoso, família, coisa que bandeirante dificilmente era. Ele veio buscar as meninas, levou. No final da vida dele, ele distribuiu as terras dele, ele deu para os genros. Os genros queriam ir embora e foram, os três. Os dois. O terceiro foi, mas a esposa já tinha morrido. Ele deu para outras pessoas também, não foi só para a família. Distribuiu as terras. Na atividade que ele exerceu, ele foi juiz, teve vários cargos em Minas Gerais. E, aparentemente, pelo menos a documentação que a gente tem, consta que ele teria sido um homem bastante íntegro. Eu acho que não dá pra falar que o Borba Gato tem um assassino. É impossível falar isso. Chamá-lo de assassino, jamais. Você pode ter algumas ressalvas. Porque uma parte da vida dele, quando a bandeira desmanchou, quando o Fernão Dias Paes morreu, quem ficou não foi o filho do Fernão Dias. O filho do Fernão Dias veio embora. E ficou com o que restou da bandeira, porque uma boa parte já tinha desaparecido. Durante a bandeira, muitos saíram fora. E gente importante, inclusive parente do Fernão Dias Paz. Largaram a bandeira e falaram, “não, chega, isso aqui não tá muito bom não, não tem comida, só tem bicho, índio e tal”. E muitos saíram da bandeira. Então sobrou nada, sobrou os índios, que o Fernão Dias tinha levado da fazenda dele, porque ele tinha caçado índio. Então, sobrou índio e acho que mais nenhum, uma pessoa assim. Então, dizem nos documentos que o Borba Gato ficou vivendo com os índios. Então, eu acho que gostei do Borba Gato. Acho que ele foi um homem interessante, íntegro e humano.
GSN: Para ser perdoado, ele assume a morte do Rodrigo Castel Blanco e entrega a localização das minas. Isso não seria um indício de que ele realmente cometeu esse assassinato?
PIGP: Eu acho que não. Porque o governante, quando manda para Portugal o fato, diz que em tal lugar o D. Rodrigo morreu, foi morto, morreu, qualquer coisa assim, só. Não junta essa morte com o Borba Gato. Quando o rei de Portugal fica sabendo disso, o que manda? Manda fazer uma devassa. Qualquer um tem medo da devassa do rei. O que aconteceu? O Borba Gato com certeza já tinha descoberto no Rio das Velhas os veios de ouro. Ele tinha feito isso. Quando o cunhado dele, o filho do Fernão Dias Paz, manda mensagem para ele, que era para vir para São Paulo, que o governador estava aqui e que queria perdoá-lo. E aí ele disse que poderia vir se o governador perdoasse e ele entregasse as minas, que ele entregaria as minas. Eu não acredito se ele realmente fosse culpado, que ele sobreviveria. Não acredito. Agora, eu acho que a história dele fica pior. Não acredito que ele teria matado, não. Porque tem uma série de documentos que foram publicados, que têm vários relatos do século XVII sobre isso, e nenhum diz que ele morreu. Eu duvido que ele teria assassinado. Ele tinha família. Assassinar um representante do rei, era um passo muito grande. Era muita violência. Não acredito realmente que ele tivesse feito isso. Porque todo mundo abandonou o Fernão, abandonou a bandeira. Por que ele vai matar o cara? Se ele sabe que ele vai ser morto, não é? Acho que ele não matou. Agora, eu não sei, não. Tem um historiador de Sabará que chama Zoroastro. Ele escreveu um calhamaço. Ele não é historiador, não sei se é médico ou dentista. E ele acaba com o Borba Gato. Eu tenho a impressão que esse livro dele foi muito lido, que é de 1932 e acabou com o Borba Gato. Fala que ele era analfabeto e outras coisas. Na verdade, não era, porque ele assina os documentos. E ele foi representante da Câmara, então ele não podia ser analfabeto. Eu acho que esse livro acabou com o nome do Borba Gato. Tanto é que você não acha um documento do Borba Gato, porque sumiram todos os documentos dele. Você vai procurar, não acha. Eu achei dos filhos e da família, porque fui pegando. Estava em Portugal. E tem no Family Search. E não era mesmo esse vilão que tinha traçado. Ainda que se você quiser acreditar que ele matou o Dom Rodrigo, ainda assim não acredito que ele seja vilão.
GSN: O problema do Brasil com corrupção vem desta época? Começou com os bandeirantes? Ou é uma coisa que a gente pode dizer que é mais recente?
PIGP: Tem uma colega de Minas Gerais que fez a corrupção no Brasil. Ela escreveu no calhamaço muito interessante. Eu acho difícil datar de quando veio a corrupção, mas com certeza já tinha aí. Eu acho que, se a gente estudar melhor a história de São Paulo, já vai ver corrupção em todo lugar aqui, política etc. Mas eu acho que a descoberta do ouro criou uma sociedade selvagem. Nas Minas Gerais, se matava por ouro, se comprava título, mas eu não acredito que tenha nascido no século XVIII, acho que ela é anterior, e anterior ao Brasil. E de muito tempo antes. Esses países que têm uma constituição, uma legislação muito específica, ela possibilita muita corrupção. Se você pegar os documentos de Portugal, há uma exigência que você sabe que não vai ser cumprida pela própria coroa. Porque quando o rei, através do governador, manda o Borba Gato impedir e tirar todo o comércio que vinha da Bahia para Minas Gerais por uma estrada que era proibida. Então, por quê? Porque o comércio chegava aqui, vendia, trocava por ouro, principalmente um determinado comerciante, e voltava embora e não pagava dízimo? O que tinha que pagar o dízimo? Que não era grande coisa também, se você pensar no de hoje. E muitos não pagavam. E um desses que não pagavam, olha que coisa interessante, era um português e era aparentado com um governante. O Borba Gato sequestrou os bens que ele tinha e depois ele foi ser administrador numa cidadezinha lá. Ele foi perdoado e recebeu vários títulos. Ele era contrabandista e ganhou tudo isso porque ele tinha um parente que era nobre. Então, a corrupção está presente na nossa história. Não sei se desde a descoberta. Não tem prova disso.
GSN: Em 2021, a estátua do Borba Gato foi incendiada por um grupo que chama Revolução Periférica. Eles alegam que fizeram o ato como uma maneira de chamar a atenção para situações da escravidão, do racismo que perpetua desde a época que do Brasil colônia. A senhora acha que essa é a melhor maneira de lutar por direitos? E como a senhora vê esse incêndio na estátua?
PIGP: Eu acho que não é a melhor maneira para lutar por direitos. Na hora que você faz uma destruição dessa, você destruiu não só o patrimônio, mas uma obra de arte. E isso é imperdoável. Eu acho que é imperdoável ter destruído essa obra de arte que o Júlio Guerra levou mais de dez anos para construir, que é construída de pedrinha por pedrinha. Eu acho isso um absurdo. Eu acho que nunca poderiam ter feito isso. Poderiam ter feito um boneco do Borba Gato e botado fogo, sabe? Mas não em uma obra de arte. Bom, a iconoclastia está presente no mundo inteiro. Estão derrubando tudo, não é só aqui. Na Europa, nos Estados Unidos estão derrubando. Eu acho que é uma vingança inútil, prejudicial. Eu sou totalmente contra o que fizeram. Eu discordo. Eu acho que é um grupo de arruaceiro que não constrói e só destrói. A gente tinha uma câmara lá. Tinha duas câmaras filmando tudo o que acontecia com a comunidade lá da Chácara Santo Antônio. Aquela comunidade perguntou se a gente queria participar do projeto e nós concordamos em participar do projeto. Então tinha duas câmaras lá que a gente pagava. E a gente viu tudo o que aconteceu, né? Tem tudo. Eu acho que não tá correto o que esse cara fez. E parece que tinha uma liderança atrás, né? Então isso significa o quê? Vamos destruir metade de São Paulo. Vamos destruir aquele monumento lá, as bandeiras, vamos destruir tudo. O que vai sobrar?
GSN: Para quem a senhora indicaria este livro que vai ser lançado em outubro? Professores, qualquer pessoa que quiser conhecer Santo Amaro?
PIGP: Eu acho que quem quiser conhecer um pouco de Santo Amaro deveria ler. Não é uma defesa, eu acho que no livro não é uma defesa, mas é um trabalho baseado em fontes que eu pesquisei. Eu acho que professores deveriam ler aquilo para repensar o que eles acham, não dos bandeirantes, mas especificamente desse bandeirante. Se falar de Manuel Preto, eu condenaria o Manuel Preto porque realmente ele fez uma rasura, destruiu o mundo. Mas eu acho que o Borba Gato não. E as pessoas falam do Borba Gato como se estivesse falando de qualquer um. Então eu acho que os professores deveriam ler para pensar melhor no que fazem. Se bem que hoje se faz muito política. Então hoje não se faz história nas escolas. Você tem aula de história, mas você não tem aula de história, você tem aula de política. O que é bastante desagradável. E também, quem mora em Santo Amaro e que falou tanta besteira, lê alguma coisa. Eu escuto falar tanta besteira, tenho vergonha. Ontem eu queria descobrir uma coisa e entrei no Wikipedia comentando, falando, aí tem uns textos sobre Diocese de Santo Amaro. Mas falam um absurdo. O Anchieta rezando missa. O Anchieta não podia rezar missa, porque o Anchieta não era padre. Quando eles falam que a Susana Rodrigues e o João Paes deram a estátua, não podiam ter dado a estátua, porque a Susana nasce depois. Aquilo que tem lá escrito, tá errado.
GSN: O que mais te surpreendeu nesse seu trabalho de pesquisa sobre o Borba Gato?
PIGP: Me surpreendeu o interesse dele pela família dele. Eu acho que ele era um cara muito família, E isso me comoveu. Bandeirantes, eles vão e não voltam mais. O Fernão Dias é um caso típico disso, e existem outros. Agora ele não, ele fez questão de voltar, vem buscar a família. Então, isso para mim é muito humano. Porque ele podia ficar por lá, arranjar um monte de mulher que tinha lá. Ele tem um filho que é bastardo, um único filho bastardo. E é engraçado, porque a gente não vê a mulher dele na história, porque a mulher não existia na história, mas a gente vê os netos. Os netos são pessoas interessantes e que vão todos ser padres. Não podia ser uma família tão ruim, não podia ser uma coisa tão horrorosa. Se os meus netos vão ser padres.
GSN: E a visão que a senhora tem hoje do Borba Gato, depois de toda essa pesquisa, é muito diferente da de antes?
PIGP: Eu não sei se é diferente da de antes. Eu não conhecia nada dele. Então, eu não tinha uma visão específica dele. A gente tem aquela visão de bandeirante, assassino, mas de Borba Gato eu não tinha esse conhecimento. Então, eu não tinha visão nenhuma dele. Nem sabia onde estava, para onde tinha ido, não sabia nada dele. Aí, quando eu comecei a pesquisar, é que eu consegui montar uma imagem dele. Mas, antes, eu não tinha.
GSN: Tem alguma coisa que a senhora gostaria de complementar?
PIGP: Você falou tudo e eu falei mais ainda. Eu acho que não. Eu gostaria que as pessoas lessem, lessem com liberdade, e aí sim julgassem. Eu esqueço aquela visão que tenho e vou ler isso aqui. Vamos ver o que isso me traz. Aí sim, eu posso ser contra ou a favor. Mas, a priori, acho que a gente não pode julgar o Borba Gato sem conhecê-lo. Acho que precisa conhecê-lo para julgá-lo.